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Angola, ruptura, liberación y vida – I

ANGOLA, RUPTURA, LIBERTAÇÃO E VIDA – I.

RUPTURA.

UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA DAS RAZÕES PORQUE “A LUTA CONTINUA” DESDE A SAGA ANTICOLONIAL, AO ANTIIMPERIALISMO INTERNACIONALISTA DE NOSSOS DIAS.

Tendo como pano de fundo a narrativa histórica sobre a Aliança Contra os Rebeldes Africanos, o tema do livro “Alcora – o acordo secreto do colonialismo”, de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, conduz-nos à necessidade de dialética para a compreensão dos fenómenos históricos, porque não bastam “os esforços” de narrativa histórica de natureza estruturalista, por muita clarividência que ela comporte e é imperativo que os historiadores não caiam na tentação da propaganda avulsa ao sabor dos interesses e conveniências de quem paga mais, conforme tem acontecido em Portugal em muitas questões relacionadas com Angola, a ponto de haver evidências de não se ter feito ainda a descolonização mental ao nível das possibilidades e exigências do século XXI!

O “soft power” sob a égide do “hegemon” tem dado para tudo, pelo que o materialismo dialético, pela sua honestidade e probidade na abordagem entre contraditórios, é a via capaz de balancear entre civilização e barbárie, uma via que não pode mais ser menosprezada por razões vitais inerentes à própria humanidade e ao respeito que a todos deve merecer a Mãe Terra, (muito menos quando o assunto é ruptura, libertação e vida!)…

A probidade escapa entre os dedos dos que são levados a não preferir um exercício abrangente entre contraditórios, capaz de fazer a leitura das razões profundas da ruptura, da libertação e da vida, com os sentidos que tanto têm a ver com a perspectiva global de relações justas e equânimes entre as nações, os estados e os povos!…

 

01– Poucos são os que se debruçam com a necessária profundidade sobre o tema da ruptura em relação ao colonialismo, ao “apartheid” e às suas sequelas em África e ainda menos os que explicam a constante tentativa de aproveitamento ao serviço do “soft power” correspondente aos interesses e conveniências do “hegemon” e seu cortejo de implicações, ingerências, manipulações, vassalagens, “emparceiramentos” e jogos operativos que passaram a integrar desde o início da década de 90 do século XX os argumentos tácitos subjacentes (correntes) ao domínio sobre o Sul Global, nos termos da não declarada IIIª Guerra Mundial.

O tema de ruptura deveria merecer não só muito mais atenção, uma vez que há questões a levantar tendo em conta a complexidade da dialética histórica a abordar, mas também porque, as visões estruturalistas tendem a monopolizar (tornando unilaterais) as opções “acomodadas” dos historiadores: é mais que evidente que eles estão a colocar os acontecimentos cada vez mais em função dos factores de domínio, “compartimentando”, por vezes porque é muito mais fácil o recurso aos fundamentos documentais e aos depoimentos onde há registos, acabando duma forma ou de outra por correr o risco de inibir, diluir ou excluir as opções com as sensibilidades, as opções e os olhos do Sul Global!

Ai dos historiadores que não se sentem minimamente incomodados, por múltiplas razões!

A maior parte dos que se debruçam sobre a história constroem narrativas unilaterais e dessas “iniciativas louváveis” (que tanto têm a ver com a superestrutura ideológica do domínio), há os que “alegremente” foram tentados a compor as partituras das campanhas mediáticas e a propaganda ao sabor e dispor de interesses e conveniências que traduzem “soft power” ao serviço do “hegemon”.

 

02- Na definição de história segundo a linha materialista-dialética e no que diz respeito a Angola o colonialismo deve ser considerado como a tese estabelecida em território angolano, grosso modo em função da Conferência de Berlim que ocorreu entre 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885.

Essa tese não se esgota contudo nesse pressuposto, dados os antecedentes marcados pela instalação dos primeiros padrões sinaléticos de presença, pela “camonização” do império colonial como introdutório aos impérios que se seguiriam, pela instalação de feitorias no litoral, pelas incursões na direcção do interior, pelas resistências africanas que se foram estabelecendo, pelos jogos de aproximação que também se foram fazendo, pelos contraditórios entre as potências coloniais, pelos povoamentos que se foram forjando, pelas razias que foram sendo provocadas, pela escravatura em função dos interesses do comércio triangular (sob o rótulo aliciante da “dilatação da fé e do império” que ideologicamente serve até hoje), pelos dados com dinamismos próprios e entre si interrelacionados de natureza antropológica cultural, física, geográfica e ambiental, pelas múltiplas questões económicas que se foram levantando em épocas distintas mas particularmente com a revolução industrial e a formação dos impérios coloniais e neocoloniais, enfim pela necessidade de inventariar um conjunto muito alargado de fenómenos prévios à própria ruptura, que tanto têm a ver com essa tese e são razão causal da antítese que se gerou.

O Movimento Popular de Libertação de Angola, MPLA foi fundado a 10 de Dezembro de 1956 e nessa altura era um projecto nacionalista que assumia a antítese em ruptura com o colonialismo e o “apartheid”, escapando à órbitra dos etno-nacionalismos que, se por um lado tanto tinham a ver com a “africanização da guerra” de que não podiam fugir nem o colonialismo, nem o “apartheid”, nem o neocolonialismo, também não eram projectos estratégicos de luta pois na sua essência não estavam tacitamente vocacionados para a libertação popular de largo espectro e rasgados horizontes, com base em resgates que com toda a legitimidade havia que realizar, tendo em conta o grau de subdesenvolvimento crónico a que antropológica, histórica e economicamente África, por tabela Angola e toda a parte Austral do continente, foram votados.

A antítese não se pode limitar ao programa Mínimo do MPLA, plataforma indispensável para se entender a autodeterminação, porque a independência e o exercício saudável de soberania colocavam-se e colocam-se acima da autodeterminação, dada a natureza das suas vocações estratégicas que respondem aos imensos resgates a realizar na longa luta contra o subdesenvolvimento crónico que tornou África “num corpo inerte onde cada abutre vem depenicar o seu pedaço”.

Por todas essas e muito mais razões, a ruptura e a libertação passaram a ter que ver com a vida.

 

03- A libertação entendida desse modo é um processo de luta que não parou no espaço nem no tempo e distende-se a partir da ruptura e da autodeterminação simbolizada pela Proclamação de independência de Angola a 11 de Novembro de 1975.

Ao fim-e-ao-cabo, esmerando-se os processos dominantes com a formação do “hegemon” que responde à aristocracia financeira mundial, o anticolonialismo e o anti-“apartheid” não pode deixar de ser hoja anti-imperialista e internacionalista!

O MPLA estabeleceu claramente a antítese a partir duma série de passos com registo documental no ano de 1960:

  • Declaração do MPLA ao governo português com a data de 13 de Junho de 1960;
  • Mensagem do MPLA ao povo português de 30 de Junho de 1960;
  • Discurso do Presidente Mário Coelho Pinto de Andrade na Câmara dos Comuns, Londres, a 6 de Dezembro de 1960.
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Excerto de entrevista a Mário Pinto de Andrade, ex-Presidente do MPLA, acerca da atividade política desenvolvida em cafés, dada ao programa «Geração de 60» (Imagens de Arquivo RTP). – https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-mario-pinto-de-andrade/

A Declaração de Londres proclamando a luta armada, a antítese sem outra alternativa face à obstinada tese colonial-fascista de Salazar, foi também importante por que a própria escolha de Londres (Conferência na Câmara dos Comuns em Londres, a 6 de Dezembro de 1960), implicava na exploração de contradições dentro do campo da NATO e numa pré-conjuntura de globalização com perspectivas hegemónicas e neocoloniais (reflectidas por exemplo na natureza do “Commonwealth”), valorizando desde logo o ímpeto inicial de libertação por parte do MPLA.

Essa Declaração é um marco que está aberto a amplas relativizações, com espectros variáveis de apreciação e interpretação, mas com uma substância fundamental que os historiadores devem sempre levar em linha de conta: a libertação do continente africano do patamar de ultraperiferia económica global, sujeito ao subdesenvolvimento crónico a que continua a ser votado.

A antítese, em ruptura contra o colonialismo, o “apartheid” e as suas múltiplas sequelas, foi sendo historicamente produzida na via legítima da luta armada de libertação nacional, que resultou na independência a 11 de Novembro de 1975 com a Proclamação da República Popular de Angola.

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Mário Pinto de Andrade – Mário Coelho Pinto de Andrade (Golungo Alto, Angola, 21 de Agosto de 1928 – Londres, 1990), mais conhecido por Mário Pinto de Andrade, foi um ensaísta e activista político angolano. Em 1930 foi para Luanda, onde fez os estudos primários no Seminário de Luanda e concluiu, em 1948, os estudos secundários no Colégio das Beiras. Partiu para Lisboa, nesse mesmo ano, para estudar Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Juntamente com outros estudantes e intelectuais de países africanos lusófonos, como Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Francisco José Tenreiro, criou o Centro de Estudos Africanos, em 1951, com o objectivo de reflectir sobre problemáticas importantes de África.Em 1954 partiu para o exílio em Paris, onde conheceu outros círculos africanos, relacionando-se com Léopold Senghor, Nelson Mandela, entre outros. Foi chefe de redacção, entre 1951 e 1958, da conceituada revista Présence Africaine e, em 1956, participou no 1º Congresso de Escritores e Artistas Negros, tendo, três anos mais tarde, tomado parte no 2º Congresso, em Roma. Na década de 60, tornou-se activista político e exerceu o cargo de Presidente do MPLA, entre 1959 e 1962 e o de Secretário-Geral desse movimento, entre 1962 e 1972. Dedicou-se, no entanto, ao estudo de sociologia e à actividade de diversas publicações antológicas e de obras literárias. Assim, publicou Antologia da Poesia Negra de Expressão Portuguesa (1958), La Poésie Africaine d’Expression Portugaise (1969), Amilcar Cabral: Essai de Biographie Politique (1980), As origens do Nacionalismo Africano (1997), entre muitos outros.Por ser considerado um dos mais importantes ensaístas angolanos do século XX e tendo sido o primeiro africano de língua portuguesa a elaborar textos críticos e estético-doutrinários sobre a poesia africana lusófona, o Ministério da Cultura de Angola decidiu criar o Prémio de Ensaio Literário Mário Pinto de Andrade. — com Gama António Luandino. – https://www.facebook.com/HistoriaDeAngola/photos/m%C3%A1rio-pinto-de-andradem%C3%A1rio-coelho-pinto-de-andrade-golungo-alto-angola-21-de-ag/674419655978608/

Nessa via de luta armada, que teve, a partir de Dezembro de 1962, António Agostinho Neto como eleito Presidente e líder, foi o seu papel fundamental para o processo dialético antagónico em relação ao colonialismo, ao “apartheid” e a sequelas que incluíram etno-nacionalismos angolanos de expressão neocolonial que até hoje não se podem perder de vista, dadas as suas implicações nas sensibilidades da “democracia multipartidária” instalada em Angola a partir de 31 de Maio de 1991, conforme o malparado Acordo de Bicesse.

Definida a contradição principal, houve, há e haverá que abordar alguns aspectos das contradições secundárias externas e internas, numa memória afecta à trilha de luta armada com interpretação materialista-dialética e no espírito da época, de acordo com uma perspectiva firme de Não Alinhamento activo.

Os que enveredam pelas narrativas em função estrita do colonial-fascismo, não fazem reflectir as capacidades estratégicas do MPLA, nem do movimento de libertação em África e quando o fazem, em grande parte das vezes confundem-no propositadamente com etno-nacionalismo ou é para fazer vigorar visões eurocêntricas em nome da “civilização ocidental” que não passou durante séculos duma autêntica barbárie.

 

04- O 4 de Fevereiro de 1961 é considerado como o mágico momento tático do início da ruptura, planificada e coordenada, o primeiro sinal evidente e resoluto da antítese à tão cristalizada quão renitente tese colonial-fascista, que deu início à luta armada, que exigiu um largo espectro de coordenações a nível internacional.

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Citizen grave para quase todos – segunda-feira, 2 de abril de 2012 Angola 1961. Mas o «4 de Fevereiro» não iria acabar na manhã desse dia. Dias depois, logo após os funerais das vítimas, grupos de civis brancos organizavam autênticas batidas pelos musseques da periferia de Luanda e provocavam a morte a centenas de pessoas. Uma semana depois, o «filme» era retomado, mas em menor escala. Novos tumultos nas cadeias faziam sete mortos, todos presos, e mais 17 feridos. E novas incursões dos mesmos grupos de civis deixavam um lastro de sangue e provocavam um número elevado de vítimas mortais que nunca chegou a ser contabilizado. –  https://citizengrave.blogspot.com/2012/04/angola-1961.html

O MPLA perfilhou esse momento tático protagonizado por patriotas de várias origens e sensibilidades e fez dele um “alto facho levado aceso” na saga da luta de libertação nacional e na sua própria memória desde os caboucos da sua própria génese.

Em termos geoestratégicos e táticos há que realçar em respeito à decidida acção do 4 de Fevereiro de 1961:

  • Um domínio de processamentos de dados e de coordenações de ordem estratégica (internacional), a fim de produzir um engodo para a divulgação além-fronteiras (com os olhos postos na ONU) e com isso vencer o bloqueio de silêncio em conformidade com a tese colonial-fascista de Portugal;
  • Um domínio de processamentos de dados de ordem táctica, patriótica e nacionalista, conectando mobilizações humanas rurais (provenientes de vários pontos do país) e suburbanas de Luanda;
  • A intenção programática de arrancar com a luta armada de libertação nacional, em ruptura (antítese) contra a tese colonial-fascista, com os olhos postos na aspiração à autodeterminação e independência;
  • Um antecedente que conforma a escola da longa luta armada de libertação nacional e a base inspiradora para todos aqueles que desempenharam actividades no quadro da luta clandestina e, depois da independência nacional, na continuação da luta (contra o “apartheid” e as sequelas, mas também contra o subdesenvolvimento crónico que advém do passado);
  • A intenção ideológica e programática a muito largo prazo em transformar o cosmopolitismo de Luanda, a capital do país, num santuário-reitor para um moderno movimento popular de libertação de Angola, de modo a que ele se identificasse com as mais legítimas e dignas aspirações de todo o povo angolano;
  • A demonstração do carácter dessa luta logo no início – com mobilização popular foram atacadas instalações e efectivos das autoridades coloniais, não indiscriminadamente, porque a luta era desde logo contra um sistema retrógrado, opressor e repressor e não contra o povo português.

O MPLA ao integrar a revolta do 4 de Fevereiro como seu próprio protagonismo, activou o início da sua base de mobilização humana a partir da intelectualidade angolana cosmopolita em ruptura com o colonial-fascismo, em ruptura com os processos de “assimilação” e “indigenato” (por isso o MPLA era moderno e sem complexos etno-nacionalistas) e aspirando a uma visão legítima de autodeterminação e independência abrangente, abarcando todo o povo angolano e todo o território nacional (1961).

Essa é, por exemplo, uma das razões da fermentação estudantil dos angolanos em Portugal, contra e já em ruptura com o colonial-fascismo, a forja de onde medrou uma importante parte da direcção do MPLA entre 1961 e 1975 (que em 1961 inclui a famosa “fuga dos 100”); a descolonização mental na época foi feita por dentro das universidades portuguesas, dando início a um longo processo de luta em prol da necessidade de largo espectro nos termos duma descolonização imediata.

De certo modo a derrota colonial-fascista começa no seio das próprias universidades portuguesas, com toda a força da fermentação juvenil- estudantil.

Essa descolonização mental influenciou também a intelectualidade estudantil portuguesa na oposição ao colonial-fascismo num longo processo que, indo desembocar no 25 de Abril de 1974, fazia parte também da antítese à tese colonial-fascista que se iria interligar secretamente ao “apartheid” por via do Exercício Alcora.

Sendo uma derrota táctica, os objectivos essenciais de ordem geoestratégica foram alcançados (nada se perdia por que havia a disposição de, a partir daí, tudo se transformar) e por isso valeu o enquadramento que o MPLA protagonizou inequivocamente em relação ao 4 de Fevereiro de 1961: um momento tático que significava que “por agora”, “os dados estão lançados” e “a luta continua” até à consumação, desde logo, do Programa Mínimo do MPLA.

 

05- Os antifascistas da península Ibérica, organizados num efémero “Directório Revolucionário de Libertação”, DRIL, com o episódio da tomada do paquete de luxo Santa Maria a 22 de Janeiro de 1961, estiveram associados ao 4 de Fevereiro de 1961 em Angola, enquanto um sinal de ruptura que ultrapassava as fronteiras de Angola e com vigor internacional que teve também a cobertura da revista “Life”, (presente em Luanda com o repórter James Burke).

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Citizen grave para quase todos – segunda-feira, 2 de abril de 2012 Angola 1961. A ideia deste post surgiu das fotos que descobri na Life Archive feitas por James Burke entre 04 de fevereiro e 17 de fevereiro de 1961, que foi quando se publicou a reportagem da Life Magazine. Pode-se concluir que James Burke estava em Luanda (como se diz no texto abaixo) e fez esta série de fotos enquanto estava à espera do paquete Santa Maria que tinha sido tomado de assalto em águas internacionais, nas Caraíbas por Henrique Galvão entre outros a 02 de janeiro de 1961 e que rumava a Luanda mas, afinal não veio porque tinha sido cercado por navios de guerra americanos e forçado a ir para Recife no Brasil. Ver post sobre o Santa Maria aqui. – https://citizengrave.blogspot.com/2012/04/angola-1961.html

O DRIL decidiu-se a desencadear a “Operação Dulcineia”, a tomada pela força por parte dum comando seu do paquete Santa Maria, a navegar em águas internacionais, para com isso denunciar o fascismo-colonialismo português, aproveitando para desviar o navio, que seria rebaptizado nesse âmbito com o nome de Santa Liberdade, de sua rota, pretensamente com vista a alcançar Luanda.

O Santa Liberdade (o Santa Maria pertencia à Companhia Colonial de Navegação, com pavilhão português), navegava no Mar das Antilhas, próximo de Santa Lúcia, com cerca de um milhar de passageiros e tripulantes a bordo, largara de Tenerife no dia 13, aportara em La Guaira (Venezuela) e em Curaçau e seguia para Miami (Estados Unidos), quando foi tomado pelo comando do DRIL.

O navio acabou por ser interceptado por meios aéreos e navais dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha (mais uma manobra de Salazar beneficiando do amplo espectro da NATO) e, após negociações, acabou por aportar a Recife, no Brasil, a 1 de fevereiro de 1961, com a evidente denúncia do carácter do “Estado Novo” pela cobertura mediática internacional da época, conforme pretendiam os componentes do comando, que tinham entre os portugueses, protagonistas ao nível do capitão Henrique Galvão, ligado ao general antifascista Humberto Delgado, que aliás também chegaria a bordo do navio tomado pelos rebeldes.

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Citizen grave para quase todos – domingo, 2 de outubro de 2011. Assalto ao Santa Maria, 1961. O Fim da Aventura. 22 de Janeiro de 1961 – Assalto ao Santa Maria – «Na madrugada de 22 de Janeiro de 1961, o paquete de luxo Santa Maria, da Companhia Colonial (no original está Nacional) de Navegação, é tomado de assalto em águas internacionais, nas Caraíbas, pelo comando único do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), desencadeando a “Operação Dulcineia” . O projecto da “Operação Dulcineia” – nome expressivo da luta da dama amada, a Liberdade – foi concebido pela DRIL, organização de resistência antifascista estruturada para a acção directa armada. – Criada na Venezuela, em Janeiro de 1960, congregava exilados da União dos Combatentes Espanhóis, pelo lado espanhol, e do Movimento Nacional Independente, delgadista, pelo lado luso. O plano da primeira iniciativa conjunta, congeminada pelo capitão Henrique Galvão (delegado plenipotenciário do general Humberto Delgado), consistia no desvio de um navio para ocupação da ilha espanhola de Fernando Pó, de onde se partiria para Angola rastilho de um levantamento insurreccional contra as ditaduras ibéricas. O dia D do embarque, inicialmente previsto para 14 de Outubro, foi por três vezes adiado, devido a imprevistos financeiros e pessoais. Finalmente a 20 de Janeiro de 1961, insinuam-se vinte operacionais, entre os seiscentos passageiros que embarcam no porto venezuelano de La Guaira, aos quais se juntarão, no dia seguinte, em Curaçao, os restantes quatro membros do comando operacional. A bordo vai ainda uma tripulação de trezentos e cinquenta indivíduos. Na tomada do navio regista-se um único incidente, uma troca de tiros na ponte, resultando a morte de um oficial e no ferimento grave de um outro. – http://citizengrave.blogspot.com/2011/10/assalto-ao-santa-maria-1961.html

O Santa Liberdade, segundo depoimento do criterioso jornalista e patriota português Miguel Urbano Rodrigues no Alentejo Popular, entrevista essa reproduzida pelo Resistir Info, um antifascista que também participara na tomada do navio pelo comando do DRIL, deveria de acordo com uma versão inicial, dirigir-se das Antilhas a Fernando Pó (hoje território da Guiné Equatorial), onde o comando previa apossar-se de duas canhoneiras espanholas que ali se encontravam, que se dirigiriam por seu turno a Luanda, com vista a projectar um levantamento revolucionário.

Esse plano seria abandonado pelo que outra previsão chegou a estar em cima da mesa: “transferir os comandos do DRIL para a Guiné-Conakry para colaborarem na luta de libertação da Guiné-Bissau”

Escolhemos pois propositadamente a versão do camarada Miguel Urbano Rodrigues, pela sua honestidade intelectual e histórico-narrativa, assim como pelo facto de ele se pronunciar sobre a ligação ao Movimento de Libertação em África, apesar de outras versões sobre a tomada do Santa Maria, uma delas constante no livro do galego José Fernandes, “Comandante Soutomaior”, (“24 homens e mais nada”).

Os desentendimentos entre os membros do comando do DRIL por um lado e por outro a persistente presença militar estado-unidense que agiu em conformidade a pedido do governo português, seguindo a manobra do navio tomado pelos rebeldes, levou a conversações entre os dirigentes da “Operação Dulcineia” e entidades diplomáticas e navais dos Estados Unidos e do Brasil, com a decisão de encaminhar o Santa Liberdade para o Recife, onde desembarcariam os assaltantes, que acabariam por entregar a “nave dos loucos”.

O camarada Miguel Urbano Rodrigues relata assim a composição do grupo que compunha a “Operação Dulcineia”: “eram 24 os membros do comando do DRIL que tomou o Santa Maria. A maioria espanhóis, quase todos anarquistas. Alguns diziam ser marxistas, mas, com uma ou outra excepção, espanhóis e portugueses não tinham formação política. Eram antifascistas e a Revolução Cubana empolgava então a juventude na América Latina. Aproximadamente uma dezena de tripulantes aderiu; gente boa, mas também sem formação política”

 

6 – O depoimento do camarada Miguel Urbano Rodrigues, que viria a ser digno militante do Partido Comunista Português, retracta de forma lúcida as personagens dos dirigentes do comando do DRIL na “Operação Dulcineia”, realça o papel dos galegos Velo e Soutomaior e é tão sóbrio, quanto cáustico, no exercício de rigor que fez em relação à verdade dos acontecimentos, como na humildade que teve para com o Movimento de Libertação em África, que constituiu para ele uma prova de universidade de vida.

Esse depoimento expõe o oportunismo do capitão Henrique Galvão, que logo após o desembarque no Recife e quando no Brasil teve conhecimento do início da luta armada com a eclosão do 4 de fevereiro em Angola, “manifestou-se contra a independência das colónias, assumindo posições racistas que chocaram a juventude brasileira”

Segundo ainda o camarada Miguel Urbano Rodrigues, os pronunciamentos do capitão Henrique Galvão acabariam por tomar o seguinte rumo: “as divergências sobre a questão colonial foram aliás decisivas para o rompimento com Humberto Delgado, ocorrido semanas depois. Nos anos seguintes – morreu em 1970 – assumiu posições ostensivamente reaccionárias, marcadas por um anticomunismo anacrónico”.

Em relação à universidade de vida que se constituía no Movimento de Libertação em África, o camarada Miguel Urbano Rodrigues deu a conhecer sem margem para retóricas o seguinte:

“A ideia era transferir para África o núcleo de comandos que participara na tomada do Santa Maria. Em Conakry, após um encontro com Amílcar Cabral, mantive contactos com os embaixadores da Jugoslávia e da União Soviética com vista eventual obtenção de vedetas armadas que nos permitissem interceptar os transportes de tropas portugueses que seguiam para Angola. O plano era expressão daquilo a que Lenine chamou o esquerdismo, doença infantil do comunismo. Recordando a iniciativa, mais do que a minha irresponsabilidade, o que me surpreende hoje é o facto de esses diplomatas me terem recebido e escutado com atenção… O comando do DRIL tinha-se, aliás, desagregado quando semanas depois voltei ao Brasil”

“O encontro com dirigentes do MPLA e do PAIGC ficou a assinalar um terramoto interior. As semanas de Conakry desencadearam em mim uma reflexão simultaneamente tempestuosa e serena. Ao regressar ao Brasil não era o mesmo jovem que concebera planos loucos a serem executados pelos companheiros do DRIL. No livro de memórias a que me referi evoco a viragem que me levou a contemplar o mundo e o comprometimento revolucionário sob outra perspectiva. Amílcar Cabral foi de todos os dirigentes africanos que então conheci o que mais me impressionou. Senti que me tratava como se fosse um velho camarada, não obstante eu ter esboçado um projecto irresponsável. Foi o início de uma relação de confiança, amistosa, reforçada pelo contacto que mantivemos através da troca de cartas. Numa homenagem à sua memória, em Lisboa, afirmei, parafraseando um discurso seu, que flores vermelhas, como o sangue dos mártires africanos, e outras, com o verde terno da esperança, cresceram já sobre o seu túmulo. As suas ideias e o seu exemplo adquiriram a consistência do que é imortal. O legado de Amílcar Cabral tornou-se património da humanidade.

Para terminar, permita que evoque um episódio. Pouco depois de regressar de África, procurei o representante do Partido Comunista Português no Brasil, que era então Álvaro Veiga de Oliveira, e disse-lhe o que me pareceu útil sobre a minha ruptura com o esquerdismo romântico. Eu lera em Conakry, no Avante, o documento em que o PCP anunciava uma nova estratégia que deveria desembocar no levantamento nacional, numa desejada insurreição popular armada. Lembro-me das palavras finais que então pronunciei: Vou lutar com os comunistas pelo tempo adiante. Podem contar comigo para sempre. Foi há quase 50 anos”…

MEMÓRIA DA “HISTÓRIA DE ANGOLA” PUBLICADA EM ARGEL EM JULHO DE 1966 – CENTRO DE ESTUDOS ANGOLANOS – GRUPO DE TRABALHO HISTÓRIA E ETNOLOGIA.

EXTRACTO DA PENÚLTIMA PARTE, “DESENVOLVIMENTO DO NACIONALISMO”.

“… Em 1958 a actividade panfletária em Angola aumentou consideravelmente. Por toda a parte, particularmente em Luanda, falava-se da revolução armada. Saíram panfletos clandestinos exortando à luta armada pela libertação de Angola. Denunciava-se o carácter do colonialismo, chamava-se as massas à revolta. Além disso a luta anticolonialista legal e semilegal, nos jornais, nas organizações antigas, em clubes de futebol, etc., era mais intensa do que nunca.

De novo se falava de cultura africana. Realizavam-se exposições de arte negra, palestras sobre as realizações das culturas africanas em Angola, exposições de pintura denunciando pela imagem a exploração colonialista, publicavam-se contos e poemas nitidamente anticolonialistas e antirracistas; nasciam de novo e melhor os artistas e escritores angolanos revolucionários.

A Sociedade Cultural de Angola, em Luanda, e a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, (associação dos estudantes das colónias em Portugal) vinham substituir a Mensagem que as autoridades portuguesas tinham destruído.

A propaganda política, o trabalho clandestino e o apelo à mobilização das massas, embora não com o vigor com que era necessário, chegava também a outras cidades de Angola. Assim em Moçâmedes, cidade pesqueira, a PIDE, polícia política do fascismo, começou a repressão para tentar acabar com todas as tendências revolucionárias, antes que elas tomassem corpo. Em Nova Lisboa, em Benguela e no Lobito, os elementos angolanos mais conscientes, afectos ao MPLA, procuravam fazer a mobilização das massas que o momento histórico exigia.

Este período agitado decorreu entre os anos de 1950 e 1960, justamente na altura em que os colonialistas faziam chegar o maior lote de população branca de Portugal com a intenção de aumentaras suas forças de combate contra a resistência angolana, contra a revolução dirigida pelos africanos. Porém em Angola haviam um número elevado de brancos nascidos na colónia. Muitos deles tinham convivido desde a infância com os elementos negros da cidade; muitos deles não tinham acesso aos meios de enriquecimento que estavam geralmente na mão das grandes empresas; muitos deles não se deixaram enganar pela situação de privilégio que o colonialismo lhes dava face aos seus amigos companheiros negros. Por isso alguns brancos nascidos em Angola, ou mesmo vindos de Portugal, sob a influência benéfica da luta de classes no seu país, foram activos militantes neste período de intensa luta de classes”

17 de Junho de 2021.


A consultar:

 

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