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África SubsaharianaArtículosImperialismo e Internacionalismo

«Quita fusil». Martinho Júnior

 

“QUITA FUZIL”

EM 1975 EM ANGOLA, MUITOS DE NÓS FOMOS “QUITA FUSIL”.

A PAZ POSSÍVEL EM ANGOLA, CONSTRUIU-SE TAMBÉM COM A RECOLHA DE ARMAS E A DESMINAGEM EM TODO O ESPAÇO NACIONAL.

A PAZ NO MUNDO VAI PASSAR TAMBÉM PELA DESMILITARIZAÇÃO E A DESNAZIFICAÇÃO, IMPLICANDO A TRANSFORMAÇÃO DAS ARMAS EM ARADOS, NA JUSTA PRODUÇÃO DE PÃO PARA TODA A HUMANIDADE!

Em Outubro de 2004 o desaparecido semanário Actual dirigido por Leopoldo Martinho Baio, levou-me a Cuba, numa viagem emocionante de curta duração, a fim de participar na Bienal dos Correspondentes de Guerra que se realizava em Havana…

Naquela altura, nesse semanário havíamo-nos batido pela “Operação Carlota II” que poderia dar sequência à original, que tanto teve que ver com a libertação da África Austral do colonial-fascismo e do “apartheid institucional” imposto pela “irmandade afrikander” veladamente apoiada pelos interesses do império que se haveria de tornar em “hegemon” unipolar!

Posto em Havana, além de ter participado na Conferência e numa Mesa Redonda dedicada a ela, nas minhas horas vagas empatei praticamente todo o “dinheiro de bolso” na compra de livros e entre eles, consegui uma preciosidade: “Secretos de generales”, da autoria de Luis Baez…

Era um compêndio resultado dum conjunto alargado de entrevistas do autor a muitos dos generais que duma forma ou de outra haviam estado implicados na luta de libertação de Cuba (Movimento 26 de Julho) e de lugares distantes em África e na América!

Foi assim que melhor conheci a epopeia do general de brigada Rafael Moracén Limonta, “QUITA FUZIL”, que agora passou para a eternidade como um dos melhores filhos de Cuba, de Angola e de toda a humanidade, por que toda a sua vida é fonte de inspiração, substantivo exemplo de lógica com sentido de vida!…

01– Respondeu o general Moracén nesse compêndio de entrevistas, entre muitas perguntas evocadoras de sua admirável vida de internacionalismo de longo curso, na charneira da amizade entre Cuba e Angola (tradução a páginas 261 desse livro):

“Luis Baez (LB) – Em que momento se incorporou no Exército Rebelde?

Rafael Moracén (RM) – Nos primeiros meses de 1958 consegui atingir a Sierra Maestra; subi pela região de Cobre – Palma Sosiano.

Os primeiros rebeldes com quem tropecei tinham como armamento umas escopetas de marca U.

Incorporei-me na IIIª Frente, sob a direcção do Comandante Juan Almeida.

Participei em vários combates, na Autoestrada Central desde Santiago de Cuba até Contramestre, na colina de Cueto, SãoLuis, Palma Sosiano e nas tentativas para tomar Duas Palmeiras.

Mandaram-me também cumprir missões na cidade.

LB – Que tipo de missões?

RM – Desarmar soldados.

LB – Quantas vezes o fez?

RM – Em três ocasiões.

JB – Onde?

RM – Em Santiago de Cuba, em São Luís e na Central de Santana, hoje Chile.

JB – Que armas capturou?

RL – A cada guarda tomei um fuzil. Levei três fuzis para a Sierra Maestra.

JB – É por isso que o chamam de QUITA FUZIL?

RM – Exactamente. Durante um tempo desgostava-me que me chamassem dessa maneira. Finalmente tive que o aceitar, porém só a meus companheiros da Sierra Maestra”

Com todo o respeito ao general Rafael Moracén Limonta, nosso combatente-irmão “mais velho”, a todos os seus companheiros da Sierra Maestra, mas levando em conta as acções que lhe derem oportunidade a tal nome de guerra e à inspiração que motivou e motiva, há que honrar o passado e a história do original “QUITA FUZIL”, mesmo que ao longo de sua vida de combatente internacionalista vocacionado desde a IIª Coluna do Che em África, tivesse outros nomes, cobrindo outras missões.

Para a guerrilha do MPLA ele era o Humberto, nascido algures na Chibia e tendo passado pela Guiné Equatorial… desde aí, dos Campos de Instrução Revolucionária que cobriam a IIª Região Política-Militar do MPLA, ele alimentou a sua saga até ao fim de sua vida e inspirou muitos dos “QUITA FUZIL” do próprio MPLA!…

… Eu fui um deles, confesso que o vivi!

02– Em 1975 o MPLA travava uma luta decisiva na tentativa de proclamar a independência de Angola a 11 de Novembro, cumprindo o seu Programa Menor!

Nesses anos, todas as armas que pudessem chegar às fileiras das FAPLA eram poucas, por bastas razões, entre elas por que era necessário vencer a todo o transe a concorrência em relação à entrega, ou cedência de armas das Forças Armadas Portuguesas em retirada, de acordo com um tão acelerado quão convulsivo processo de descolonização institucional, à FNLA e à UNITA.

Se o general António de Spínola havia sido afastado do Movimento das Forças Armadas Portuguesas, muitos spinolistas estavam todavia disseminados ainda nas unidades destacadas em África e esse era um obstáculo a considerar e a transpor para quem se afanasse no roubo de armas dos quarteis portugueses, por que eles procuraram fornecer armamento à FNLA e à UNITA!…

O Grupo de Operações Especiais da Segurança do Estado-Maior das FAPLA recebeu esse tipo de missões, entre muitas outras que naquela altura se tiveram de cumprir e foi bem-sucedido na maior parte dos casos!

Entrava-se nos quarteis das FAP com efectivos desarmados mas fardados com uniformes em uso das FAP, carregávamos numa espécie de contrarrelógio Unimogs ou mesmo Berliets com armamento, equipamento e munições, por vezes em caravana e transportávamos tudo para o Morro da Luz (à Samba, região sul de Luanda), onde se encontrava instalado o Estado-Maior das FAPLA, a fim de as fornecer às diversas Frentes empenhadas nos combates, quando as operações estavam a decorrer em grande escala!

Numa dessas ocasiões a missão, que se desenrolava no quartel do ASMA (Agrupamento do Serviço de Material de Angola), correu mal e todo o efectivo que a cumpria foi detido pela unidade de serviço das FAP, cujo quadro de oficiais era formado na sua maioria por spinolistas!

Lembro-me da presença do Major Boto, um inveterado spinolista que imediatamente após o 25 de Abril andou a fazer a propaganda de Spínola pelos quarteis das FAP nos Dembos onde visitou a Companhia de Caçadores 1204, da qual eu fazia organicamente parte como Alferes Miliciano, imediatamente antes de ser desmobilizado…

Detidos, fomos transferidos para a Casa de Reclusão debaixo de escolta, com armas aperradas, amarrados e vaiados pela soldadesca, depois de termos colocado na primeira Berliet 425 armas G-3, calibre 7,62 NATO… era eu próprio que as estava a arrumar e a contar…

Nessa missão saiu-nos cara a denúncia de que fomos alvo enquanto “QUITA FUZIL” por junto e atacado em Angola, mas não podíamos deixar de honrar o “QUITA FUZIL” original!…

Dois dias depois de sermos libertados da prisão em função dum acordo tácito entre o MFA em Angola e o MPLA, participei no desvio dum camião Berliet que carregava 44 morteiros de 81 mm para o quartel das FAPLA na Frente de Quifangondo!…

O camião iria ser embarcado na Base Naval de Luanda integrado num lote de equipamentos e armamentos da NATO de regresso a Portugal, todavia conseguiu-se com isso, engrossar o potencial de armas que contribuíram para a defesa da capital contra a Operação da CIA contra Angola, a Operação Iafeature, batalha de Quifangondo!…

Yo tanbién soy un “QUIITA FUZIL”!…

        – Largos anos se passaram e muita luta se foi travando na África Austral e Central até se chegar à paz possível do 4 de Abril de 2002 em Angola!

Desde essa altura havia que retirar da circulação largos milhares de armas nas mãos de civis ou de irregulares, assim como levar a cabo enormes operações de desminagem, pois Angola, à escala global, havia-se tornado num dos territórios com mais minas implantadas e disseminadas em enormes áreas rurais!

Assim uma autêntica missão “QUITA FUZIL” de amplitude nacional foi determinada em Angola e esse foi e é um dos maiores méritos que se pode atribuir ao Presidente José Eduardo dos Santos, contrabalançando os seus delírios do âmbito da terapia neoliberal que culminaram com a corrupção galopante dos seus últimos anos de governação, imediatamente antes de 2017!

A operação “QUITA FUZIL” em larga escala que foi realizada em Angola, conjuntamente com a desminagem, é um exemplo que deveria ser tomado a sério e a peito por todos os que estão tomados por uma massiva posse de armas que afecta toda a sua sociedade, algo que é aconselhável nos próprios Estados Unidos, mentores e servidores do “hegemon” unipolar!

Não haverá libertação se não houver desarmamento massivo, acompanhado de desnazificação das mentes e para o Pentágono exige-se a retirada dos efectivos das mais de 700 bases militares que possuem no “ultramar”, muitas das quais na Europa que urge libertar!

O Pentágono ocupa a Europa e só assim é possível arregimentar vassalos na via do híbrido União Europeia – Organização do Tratado do Atlântico Norte e manter uma superestrutura ideológica neonazi supranacional para todos os que compõem a envenenada “comunidade internacional” de textura eminentemente anglo-saxónica que exclui todos os outros!…

Dessa forma a “democracia representativa” europeia não o é, muito pelo contrário e urge como nunca descolonizar e desnazificar as mentes que conduziram ao actual estado de “APARTHEID GLOBAL”!

Se em Angola em tempos e épocas distintas o original “QUITA FUZIL” que agora desapareceu fisicamente, inspirou os angolanos combatentes na guerra como na paz, tarda essa inspiração a chegar ao próprio “hegemon” unipolar, o maior fabricante e vendedor de armas, equipamentos militares e munições à escala global!…

04– Não sei se a Federação Russa se inspirou no general rebelde Rafael Moracén Limonta, agora fisicamente desaparecido, que aliás os assessores soviéticos conheciam desde Angola…

Não sei se a decisão de desmilitarização e desnazificação a que meteram ombros com a actual Operação Especial decidida em território da Ucrânia, foi sequer inspirada no caso da construção da paz com ausência de tiros que em Angola foi obtida com um inegável êxito por toda a sociedade, abrindo um espaço patriótico acrescido para a construção da identidade nacional!…

Se Angola fizesse parte da “comunidade internacional” que exclui os outros, o seu exemplo seria muito mais conhecido, mas Angola é um Não-Alinhado activo do Sul Global e até nisso o seu bom exemplo é penalizado!

Depois, por via do choque e da terapia neoliberal, toda essa saga de busca de paz fica deliberadamente ofuscada!

Todavia toda a luta de libertação comporta na sua essência a aspiração à paz e a paz passa pelo desarmamento e a desminagem, onde quer que seja, na Líbia, na Síria, no Iraque, no Afeganistão, ou na Ucrânia!…

A própria libertação da Europa e da humanidade só se vai poder alguma vez fazer com o desarmamento, com a desminagem, com a desmilitarização e, desde logo, com a desnazificação dos formatados pelo “hegemon” unipolar quer por via da ocupação forçada do Pentágono, quer por via do zombi-híbrido que se constituiu na UE-NATO!

Desmilitarizando e desnazificando na Ucrânia, a Federação Russa lança um repto à necessidade premente não só de libertar a Europa, mas os próprios Estados Unidos, algo que merece o apoio e o incentivo de todas as nações, estados e povos do mundo, grande parte deles num Sul Global onde se encontram bases militares do Pentágono!…

… E não é que tudo parte da inspiração protagonizada em vida pelo combatente-irmão, general internacionalista Rafael Moracén Limonta, “QUITA FUZIL”, a quem foi também outorgada nacionalidade angolana, heroico combatente revolucionário em Cuba e em Angola, que nos deixa um legado feito repto para que o mundo alguma vez se consiga ver livre da barbárie feudal de que está contaminado!?

“QUITA FUZIL” um reconhecimento justo e uma imensa gratidão por teu exemplo, pelo teu legado, por aquilo que inspiras e pelo repto que é uma das maiores aspirações da paz global capaz de lógica com sentido de vida, que toda a humanidade merece e merece também, cada vez mais, a exausta Mãe Terra!…

CÍRCULO 4F, Martinho Júnior, 29 de Março de 2022!


Imagem extraída do Granma: Oferendas florais do general-de-exército Raúl Castro Ruz, líder da Revolução Cubana, e do primeiro-secretário do Partido e presidente da República, Miguel Díaz-Canel Bermúdez, acompanharam as honras fúnebres do general-brigadeiro Rafael Moracén Limonta, Herói da República. Último adeus ao general-brigadeiro da reserva Rafael Moracén Limonta

 

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