Tendencia contra natura. Martinho Júnior
INCLINAÇÃO CONTRA NATURA.
“REMEMBER” HAITI!
Em África fica-se com a sensação que jamais se foi tão longe quanto o necessário para resgatar toda a humanidade não só dum passado genocida como de um presente de domínio hegemónico que se nutre dos modos e dos tempos desse genocídio, da escravatura sua contemporânea, do colonialismo, do “apartheid” e de todas as sequelas desse longo processo de degradação ética e moral de muito mais de 5 séculos!
Explicá-lo em termos dialéticos é um processo fecundo que está por muito averiguar e aprofundar, porque muitas convenções ditadas por longos processos de aculturação à “civilização ocidental” têm sido mantidas, garantindo a formatação mental dos africanos, limitando-os, confinando-os, enfim, subjugando-os!…
Um dos marcos a considerar é incontornavelmente a questão do Haiti que África desconhece, em muitos casos recusando-se a abordá-la, de tão inibida que está pelas convenções “ocidentais”, conforme se pode verificar, por exemplo, por via da agenda dos países de África, Caraíbas e Pacífico. “ACP”…
África recusa-se basicamente a debruçar-se sobre a revolução dos escravos de há mais de 200 anos no Haiti, a revolução que marcou a ignição das lutas armadas de libertação desde logo na América… e recusa-se a debruçar-se também porque todo o processo libertário do Haiti foi propositadamente inquinado não só pelo poder das potências colonizadoras (e neocolonizadoras) desde então, mas porque dando sequência à IIª Guerra Mundial, a hegemonia unipolar sustentada pelo exercício anglo-saxónico cada vez mais a partir dos Estados Unidos, multiplicou as ingerências e as manipulações sobre as pequenas ilhas das Caraíbas desde a inércia da sua própria expansão, intoxicando premeditadamente todo o conhecimento e compreensão histórica e antropológica que pudesse haver sobre a revolução haitiana e sobre o que se foi abatendo sobre o Haiti!
A luta armada de libertação em África desse modo confinou-se às convenções “ocidentais” não só temporalmente (historicamente), mas também antropológica, sociológica, psicológica e sobretudo ideologicamente!…
Sobretudo ideologicamente por que a história da escravatura dos afrodescendentes na América e a ignição revolucionária que constituiu a revolução dos escravos do Haiti, ou foram amputadas da memória de África, ou sofreram manipulações de interpretação por parte dos interesses de domínio que culminaram no império da hegemonia unipolar!
Figuras como Franz Fanon, que estudou a psicologia do opressor e do oprimido (“Os condenados da Terra”) e o estado latente de ruptura do seu inter relacionamento, ou de Amílcar Cabral que se propunha ao “suicídio de classe” para fazer emergir a figura do combatente da luta armada de libertação em África, são nesse aspecto algumas das excepções que merecem a referência e a honra próprias dum patamar de cultura de que África se alheou!
As suas abordagens sendo excepção, não tiveram suficiente continuidade, nem mereceram a preocupação no sentido de se aprofundar o conhecimento histórico e antropológico que mergulha nos fenómenos do genocídio, da escravatura e do próprio colonialismo inerentes aos sucessivos expedientes de domínio sobre o Sul Global!
Assim o conceito de ruptura ficou mutilado, confinando-se às premissas marxistas-leninistas que só surgiram com a introdução da máquina ao invés da força braçal do trabalho escravo, com o advento da Revolução Industrial com expressão colonial na Conferência de Berlim!
Essa mutilação esteve também na base da sobrevalorização dos conceitos da “Guerra Fria” estimulados acima de tudo pelo processo de domínio que conduziu ao império da hegemonia unipolar, acompanhado no seu reverso pela subvalorização das capacidades de Não-Alinhamento, apesar da Conferência de Bandung e do seu dramático espectro no Sul Global (lembre-se o que aconteceu em relação à Indonésia e à Jugoslávia, a título de exemplo).
A carga energética e mental para se abordar o que ao imperialismo diz respeito, no Sul Global deve ser anterior à Revolução Industrial!
É a revolução cubana primeiro, quando o Comandante Fidel assumiu a necessidade de se pagar a dívida ética e moral para com África, ou a revolução bolivariana, quando desenterra do olvido a gesta do prócer da independência Lourenço Chirindo, antecessor de Simon Bolivar, que se aproximam da interpretação mais justa e mais saudável das profundas (e profícuas) raízes da luta armada de libertação no Sul Global, que remontam a épocas antes da revolução industrial!
Fazem-no enquanto nações, estados e povos caribenhos também afrodescendentes que revelam, além de José Marti e de Simon Bolivar, a gesta do Haiti e respeitam os imensos ensinamentos que há a colher dela!
A legitimidade sobre a ruptura portanto não se consumou no patamar saudável em benefício de toda a humanidade, nem no espaço, nem no tempo, pelo contrário: a necessidade de ruptura nestes tempos decisivos de mudança de paradigma, recrudesceu, dado o bárbaro carácter da hegemonia unipolar e o peso de seus tentáculos, vassalagens e “emparceiramentos” contra natura, por África adentro!
Ao contrário das nações e povos autóctones da América, os africanos perderam-se em convencionados labirintos que não tocaram suas próprias raízes desde os críticos aspectos transatlânticos de sua escravatura!
OS AFRICANOS ESTÃO LIMITADOS E CONFUNDIDOS NA VISÃO DE SI PRÓPRIOS E DOS OUTROS!
A base da percepção dos africanos sobre si próprios e sobre os outros, estando convencionada, limitada, confinada e confundida (fazendo-se deliberadamente uso dos chavões do interesse e conveniência dos processos de domínio), não só rejeita a perceção sobre o Haiti, mas inibe a percepção sobre a história contemporânea do Haiti, tal como o estado neocolonial em que os povos se encontram!
Em África quem ousa estudar o Haiti e as lições que se desprendem de sua história?
Esse estado de prostração por inibição, é já um estado mental propício ao neocolonialismo e evidencia-se à medida que se vão esclarecendo os processos de domínio hegemónico unipolar eminentemente anglo-saxónicos, processos que lançam mão de seu poder “hard power” como do seu poder “soft power”!
O poder instrumentalizado do Pentágono revela-nos precisamente isso e é assim que o Comando África contempla “hard power” e “soft power”, ou seja, um misto de exercício militar confundido com os parâmetros de inteligência “civis”…
São esses poderes que criaram e recriaram chavões generalistas impeditivos de apreciação consciente rebelde, capaz de levar por diante a legítima ruptura, como o termo “Guerra Fria”, ou ainda o conceito sobre “esquerda” e “direita”, quando o verdadeiro conceito que conta é a luta de libertação quando segue a lógica com sentido de vida… ou a sua inexistência!
O domínio da hegemonia unipolar condiciona ainda mais os conceitos e as interpretações dos africanos, como se a ruptura fosse um processo não mais vigente, ultrapassado no espaço e no tempo, subvertendo desse modo as ideologias que nutrem o poder em África, a ponto de procurar separar classes dirigentes de todos os outros substractos sociais e prejudicando qualquer veleidade de gerar, sob os escombros da Conferência de Berlim e onde quer que seja, desde logo “um só povo e uma só nação”!
As amarras mentais que prendem os africanos às convenções “ocidentais” foram-se institucionalizando e por isso África tem tantas dificuldades em sair do pântano duma economia ultraperiférica tal qual hoje se encontra!
Com a mudança de paradigma em curso, essa confusão lançada sobre os africanos que estão longe de consumar a ruptura porque ideologicamente confinados, limitados e pressionados, torna-se mais exposta, daí, por exemplo, estarem-se a condenar de forma tão convencionada, os golpes de estado contra os expedientes da “FrançAfrique”, quando eles se tornaram mais-que-legítimos nos termos da ruptura neocolonial que está por fazer!
A confusão contudo vai mais longe e revela-se nas apreciações que se fazem em relação aos outros, por vezes nutridas de intestinos contraditórios!
O próprio fenómeno de luta armada de libertação está assim em cheque, como está em cheque até onde ele continua a ser legítimo!
As interpretações sobre a libertação da Europa demonstram esse dilema que repesca a “Guerra Fria” e os conceitos inculcados de “esquerda” e “direita” por via da confusão que não leva em conta subjacentes contraditórios, considerando por exemplo que o “apartheid” sul-africano está em pé de igualdade com as iniciativas em curso por parte da Federação Russa, integradas num amplo processo de mudança de paradigma!
Apagar a necessidade de ir mais longe na legitimidade da luta de libertação, é isso que nos traz o capitalismo neoliberal, porque é ele que hoje introduz neocolonialismo!
Há uma crise existencialista em África: “to be or not to be”?!…
ALINHAR COM AS REGRAS DA HEGEMONIA UNIPOLAR?
No seguimento da Cimeira Estados Unidos – África (retiramos propositadamente o termo América), o Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço deu uma entrevista à “Voice of America”, uma entidade conhecida como um instrumento “soft power” da Central Intelligence Agency, CIA.
Na entrevista ao “senhor Angola” da “VOA”, o veterano João Santa Rita e no que diz respeito ao choque que se faz sentir no campo de batalha da Ucrânia, num momento em que os emergentes vão marcando a mudança de paradigma desmascarando as pretensões da “civilização ocidental” regida pelos anglo-saxónicos “straussianos”, o argumento para o voto favorável à Ucrânia “desalinha” Angola em relação à percepção histórica dum contencioso que já leva séculos!…
“Desalinha” também Angola da lógica com sentido de vida!
O “Grande Jogo” da tensão entre a Rússia e o Império Britânico, sintomaticamente ocorre desde o tempo da revolução dos escravos no Haiti, advindo ambos os fenómenos históricos do início do século XIX…
… No imenso continente Asiático-Europeu (assim se deve considerar com os olhos do Sul Global ao invés do apelativo conceito que se expressa como “continente Euroasiático”), tem tido a “ilha” interior do Afeganistão a charneira do impasse, tal como o Haiti nas Caraíbas, se levarmos em conta Cuba versus Estados Unidos, ou Venezuela Bolivariana versus Estados Unidos…
De facto na Ásia-Europa o choque entre uma potência marítima como o foi o Reino Unido (agora o seu legado são os Estados Unidos) e uma potência transcontinental como a Federação Russa e com os olhos na China, não pode ficar sem profunda referência face aos contenciosos actuais que nas Caraíbas se distendem também sobre o impasse do Haiti!
A ruptura que há a fazer sendo contra o neocolonialismo, é pela libertação das nações, dos estados e dos povos do Sul Global, ou seja a libertação justa de toda a humanidade que só tem uma saída: lógica com sentido de vida!
As opções a favor da libertação de toda a humanidade do fardo que constitui a hegemonia unipolar, ganham hoje uma revigorada expressão e impulso, porque é a opção ética, moral e cívica que deve nutrir todo o Sul Global como antes a revolução dos escravos no Haiti, ou a luta armada de libertação em África!
Compreende-se desse modo a tensão em que se encontra a Europa e a pressão no sentido de sua libertação pois a Europa, além de ocupada militarmente, tem sido instrumentalizada enquanto vassala, a ponto de estar à beira de se tornar de novo “carne para canhão”!
O “desalinhamento contra natura” de Angola começou a ser feito alinhando-a de facto com a opção marítima dos piratas e corsários de sempre, a perversa versão dos acontecimentos segundo a trilha de Sua Majestade Britânica, contrariando a coerência de 47 anos de Não-Alinhamento que impôs imensos sacrifícios sim, mas manteve, a nível dos relacionamentos internacionais, o “alto facho levado aceso” do MPLA sobre todas as patrióticas cabeças dos que se têm identificado com o povo angolano e com todos os povos africanos, particularmente os da África Austral e Central, ainda que no alheamento das lições emanadas desde a saga histórica do Haiti!
A OPÇÃO PELA HEGEMONIA, ESTÁ À BEIRA DE SER UMA OPÇÃO PELA ESPADA DOS QUE ESTÃO DESTINADOS A “CARNE PARA CANHÃO”!
O “desalinhamento contra natura” da Angola, ao invés de seguir a cultura do Não-Alinhamento recomendável para África (que continua a ser uma ultraperiferia económica, pasto dos artifícios coloniais e neocoloniais advenientes de antes dos tempos da Conferência de Berlim conforme comprova o alheamento sobre a revolução dos escravos do Haiti enquanto ignição de outras libertárias revoluções), vai com cada vez mais evidências no sentido da barbárie, desde logo ao utilizar-se um falso pretexto, relativo às nações, aos estados, aos seus territórios e aos povos!
Nenhum outro continente teve uma arquitectura feita sob tão violenta opressão como África sujeita ao esquadrinhar da Conferência de Berlim pelas potências coloniais e neocoloniais e por isso a noção de território só pode ser distinta quando comparada à questão de estado, de nação, de território e de povo noutros continentes…
Nenhum outro continente esteve sujeito a algo similar à Conferência de Berlim, numa altura em que ficava comprovado desde o Haiti que a liberdade para os africanos, sendo legítima, afinal só podia ser conseguida com muito sangue, suor e lágrimas e um processo de ruptura que está longe de ter terminado!
Tanto pior quando se recorda o “bastião branco” da África Austral, alinhavado desde o Le Cercle pelo Exercício Alcora e o seu prolongado sucedâneo enquanto houve “apartheid”, tal como suas sequelas!
Impossível, quando se tem presente esses ingredientes que continuam a fazer parte dos expedientes dominantes, “baralhar as cartas e dar de novo” num jogo híper viciado!
A ética, a moral e a componente cívica do “apartheid” era barbárie, enquanto o exercício dos emergentes multilaterais, tanto na Ucrânia quanto em Taiwan, está de facto no mesmo pé de legitimidade dos que levaram a cabo a expressão armada da luta de libertação no Haiti, na América Latina, na Ásia e em África, neste caso de Argel ao Cabo, com uma vantagem: buscam a paz e a harmonia por via da cooperação, da solidariedade, do comércio e da integração económica e financeira em novos moldes, ao invés de recorrer às armas, ao genocídio, ao caos, ao terrorismo, à pirataria e à desagregação!
De facto o regime implantado em Kiev por via do golpe de estado de EuroMaidan, tem tudo a ver com neonazismo e suas práticas, repescando as redes “stay behind” de Stepan Bandera conformes, pela sua natureza, à essência do “apartheid” do bastião branco na África Austral, ou à essência da intervenção napoleónica no Haiti, que a revolução dos escravos derrotou!
Na Europa tanto pior quando se recorda a devassa da União Soviética, ou o estilhaçar da Jugoslávia, porque a hegemonia agarra-se ao caos étnico e religioso em pleno século XXI, para levar avante os seus propósitos de confundir, dividir, desagregar, a partir dos oceanos para dentro dos continentes, tal como o faz em suas práticas de conspiração o Pentágono e a instrumentalização da Organização do Tratado do Atlântico Norte que tenta juntar os cacos sem qualquer responsabilidade ou coerência democrática!
África deve-se antecipar em relação à Europa, no que diz respeito à ruptura com as convenções “ocidentais” que condicionam até à asfixia!
Estudar a história do Haiti, torna-se obrigatório para África saber sair do pântano que os da hegemonia unipolar a tentam colocar, apesar dos esforços dos que protagonizam a mudança de paradigma!
Círculo 4F, Martinho Júnior, 24 de Dezembro de 2022.
Imagem: Recuperação de “Reconstrução”, quadro dum pintor haitiano que expõe na tela a continuada aspiração de liberdade dos descendentes dos escravos na Hispañiola – https://paginaglobal.blogspot.com/2019/03/estado-do-mundo.html; https://frenteantiimperialista.org/blog/2019/03/11/estado-do-mundo/.
Alguns textos de suporte:
- Grande entrevista: João Lourenço fala sobre a aproximação aos EUA e mandatos presidenciais – https://www.voaportugues.com/a/grande-entrevista-jo%C3%A3o-louren%C3%A7o-fala-sobre-aproxima%C3%A7%C3%A3o-com-os-eua-e-sobre-os-seus-mandatos-presidenciais/6884470.html;
- Grande Jogo – https://en.wikipedia.org/wiki/Great_Game;
- Do material secreto do 5º Departamento do GUGB do NKVD da URSS – sobre a participação de estadistas americanos e britânicos em operações financeitras… – https://www.prlib.ru/item/1295744;
- África, Caraíbas e Pacífico – https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/africa-caraibas-e-pacifico/.
Alguns textos de Martinho Júnior:
- A aposta pela vida – http://paginaglobal.blogspot.com/2014/02/haiti-aposta-pela-vida.html;
- Um país invisível – http://paginaglobal.blogspot.com/2014/02/haiti-um-pais-invisivel.html;
- As muitas lições do Haiti – http://paginaglobal.blogspot.com/2011/05/as-muitas-licoes-do-haiti.html;
- Estado do mundo – https://paginaglobal.blogspot.com/2019/03/estado-do-mundo.html; https://frenteantiimperialista.org/blog/2019/03/11/estado-do-mundo/.